“A MODERNIDADE E A QUESTÃO AMBIENTAL”
Por: Fabíola Marono Zerbini
I – Introdução…
“… eu começo a sentir a embriaguez a que essa vida agitada e tumultuosa me condena. Com tal quantidade de objetos desfilando diante de meus olhos, eu vou ficando aturdido. De todas as coisas que me atraem, nenhuma toca o meu coração, embora todas juntas perturbem meus sentimentos, de modo a fazer que eu esqueça o que sou e qual meu lugar…”.
(Jean-Jacques Rousseau, “A Nova Heloísa” – 1761)
O sentimento tumultuado e incerto expresso por Rousseau há mais de dois séculos em sua obra, “A Nova Heloísa”, reflete, em grande parte, o espírito do “indivíduo moderno”. Ao lermos as palavras da epígrafe acima, certamente nos questionamos sobre a autenticidade, e mais, sobre a legitimidade de tal afirmação, muitas vezes esquecendo-nos de que foi exatamente nesta época que a chamada “modernidade” se encontrava em sua fase final de gestação para, apenas alguns anos mais tarde, se materializar em todos os níveis da vida pessoal, social e política através das grandes revoluções que dominaram e penetraram a Europa – e o mundo – a partir de 1790.
Marshal Berman, em seu livro “Tudo que é sólido desmancha no ar”, nos aponta que é exatamente esta atmosfera, “de agitação e turbulência, aturdimento psíquico e embriagues, expansão das possibilidades de experiência e destruição das barreiras morais e dos compromissos pessoais, auto-expansão e auto-desordem, fantasmas na rua e na alma – que dá origem à sensibilidade moderna.” (BERMAN, 1986) (grifo nosso). Se pensarmos bem, esta atmosfera está ainda muito presente nos dias de hoje, mas certamente inserida em um outro contexto, mais preocupante, mais contraditório, mais paradoxal.
Esta afirmação deve-se, em grande parte, ao fato de estarmos, neste momento, vivenciando e experimentando um período onde as conseqüências da modernidade, esta entendida como algo que “refere-se a um estilo, costume de vida ou organização social que emergiram na Europa a partir do Século XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influência” (Giddens, 1991) ‘estão se tornando mais “radicalizadas e universalizadas do que nunca” (Giddens, op.cit).
E não precisamos ir muito longe para evidenciar tal radicalização e universalização das conseqüências de um certo “sentido de ser” pregado pela cultura moderna, basta que olhemos para os lados – no tourbillon social das grandes cidades cinzentas e esfumaçadas, ou mesmo, nas grandes planícies que um dia foram florestas – para percebermos alguns dos resultados que todo “estado de ser, pensar e agir” nos levou.
Por certo que toda a história da humanidade se reflete nas conseqüências percebidas em cada tempo desta mesma história, mas nenhuma fase anterior à modernidade interferiu tanto e em todos os aspectos da vida em sociedade. Tudo se alterou para compor a “nova ordem” que então se estabelecia: as paisagens de engenhos a vapor, ferrovias, zonas industriais; os meios de comunicação ampliados e potencializados através dos telefones, jornais diários e telégrafos; a expansão do mercado – da produção e do consumo – com o surgimento do capital e da produção em série, a proclamação dos direitos humanos e o surgimento das Constituições Federais dos recentemente denominados estados de Direito, o início da ciência moderna marcado pela racionalidade, enfim, todas as esferas foram atingidas e modificadas em seu âmago. Eis a razão da importância da modernidade nas atuais discussões acerca dos rumos da civilização contemporânea.
Mas há um outro aspecto – dentro ainda desta introdução que busca apontar a importância do entendimento aprofundado da modernidade no contexto das questões ambientais – que se manifesta na relação clara e direta entre crise ambiental e crise cultural, pressupondo um tratamento científico da relação Cultura X Natureza como algo muito mais interativo do que fazem crer as correntes positivistas. Afinal, se a cultura moderna teve e ainda tem forte influência na chamada crise ambiental, então, podemos associá-la a uma crise cultural de valores, de um certo estado de “ser, pensar e agir” iniciado em um determinado momento e contexto histórico, cujo poder de influência e penetração se mostrou evidente por si só a ponto de podermos manifestar que a “crise ambiental é uma crise ética da razão” (TASSARA, 2003).
Enrique Leff, em seu artigo “Pensar la complejidad ambiental” reforça esta idéia ao iniciar sua argumentação a partir do entendimento de que “la crisis ambiental es sobre todo un problema del conocimiento, lo que lleva a repensar el ser del mundo complejo, a entender sus vías de complejización, para, desde allí abrir nuevas vías del saber en el sentido de la reconstrucción y la reapropiación del mundo” (Leff, 2000).
Esta afirmação: de que a crise ambiental é uma crise da razão, ou, do conhecimento, abre precedente para uma discussão acerca da possibilidade concreta que a humanidade tem em suas mãos de alterar o curso da história rumo a construção de um futuro onde a crise se amenize e as oportunidades se maximizem. Ou seja, está nas mãos da humanidade a escolha pela construção conjunta de um projeto de futuro que se priorize em valores, condutas e ações direcionadas ao rumo da sustentabilidade.
Para tanto, precisamos, elucidar esta relação de causa e conseqüência, precisamos esclarecer, aprofundar o entendimento sobre os principais aspectos da construção desta “realidade moderna” – suas raízes e principais conseqüências – de forma a criarmos um “diagnóstico” completo e aprofundado da atual crise contemporânea, entendendo este “diagnóstico” – dentro do processo de transformação social pautado pelo eixo “Enxergar, Inquietar-se e Intervir”[1] – como um dos pressupostos básicos de um projeto de intervenção conjunto da humanidade que objetive a construção de um futuro pautado na sustentabilidade sócio-ambiental.
II. Re-conhecendo a Modernidade…
“…aquela aparente desordem que é, na verdade, o mais alto grau de ordem burguesa.”
(Dostoievski em Londres, 1862).
“O indivíduo moderno precisa da história porque a vê como uma espécie de guarda-roupa onde todas as fantasias estão guardadas. Ele repara que nenhuma realmente lhe serve – nem primitiva, nem clássica, nem medieval nem oriental – e então continua tentando, incapaz de aceitar o fato de que o homem moderno jamais se mostrará bem trajado, porque nenhum papel social nos tempos modernos é para ele um figurino perfeito.”
(Além do Bem e do Mal, 1882 – Nietzsche)
“Re-conhecer” a modernidade tem um significado muito especial para muitos autores que abordaremos neste artigo. A começar por Enrique Leff e seu discurso sobre a importância de “aprehender la complejidad ambiental” (Leff, 2000), passando por Anthony Giddens, e sua afirmação de que “capturar a natureza das descontinuidades em questão, devo dizer, é uma preliminar necessária para a análise do que a modernidade realmente é, bem como para o diagnóstico de suas conseqüências, para nós, no presente” (Giddens, 1991), e Marshal Berman, para o qual “apropriar-se das modernidades de ontem pode ser, ao mesmo tempo, uma crítica às modernidades de hoje e um ato de fé nas modernidades – e nos homens e mulheres modernos – de amanhã e do dia depois de amanhã.” (BERMAN, 1986).
Toda a importância dada à modernidade na introdução deste artigo – como fator propulsor de muitas das causas e conseqüências da atual crise sócio-ambiental – pode parecer até irônica se pensarmos no aspecto temporal de sua duração. Segundo o famoso calendário de Carl Sagan, onde a história da vida na Terra é condensada em apenas um ano, a modernidade aparece no último segundo, do último minuto, da última hora, do último dia…
Ou seja, ela (a modernidade) é praticamente insignificante em termos temporais quando comparada à história da vida, e mesmo, à da humanidade como um todo. Mas mesmo assim, e aí talvez esteja o outro lado da ironia, suas características e prerrogativas contêm fortes indícios e evidências de uma mudança de comportamento tão profunda, que, em apenas três séculos, foi capaz de construir uma crise ambiental – evidenciada pelos atuais dados acerca da escassez de recursos naturais, da “super-produção” de resíduos sólidos e da iminente ameaça das mudanças climáticas globais – e potencializar uma crise social – através das novas relações de trabalho e do evidente crescimento das desigualdades sociais como reflexo da economia tradicional – como nunca antes fora visto.
Marshall Berman propõe uma divisão da modernidade em três fases. Uma primeira, delimitada entre os Séculos XVI e XVIII, onde começam a surgir os primeiros indícios desta nova forma de ser, agir e pensar. É nesta fase que a revolução burguesa começa a tomar corpo no contexto do Iluminismo e das transformações políticas que viriam se concretizar mais adiante, com os pensamentos de Hobbes, Locke, e, principalmente, Rousseau, por sua vez, foi o primeiro a usar a palavra moderniste. Nesta fase, onde as pessoas estão apenas começando a experimentar a vida moderna, é que se forma o caldo intelectual e conjuntural para o marco principal da modernidade, as grandes revoluções ocorridas a partir de 1790.
Eis que se inicia a segunda fase, marcada pela Revolução Francesa, e suas reverberações: Revolução Industrial e Revolução Calvinista, principalmente. O poder de transformação social deste momento da história foi muito grande. Toda uma nova ordem social estava se anunciando, com o início das sociedades capitalistas e com o advento do livre comércio (que até então era prerrogativa estatal); com a promulgação dos direitos humanos, e, a conseqüente afirmação do indivíduo frente à coletividade (acompanhado de todas as promessas liberais acerca da liberdade individual); com a criação do estado de direito, entendido este como a mais perfeita forma de governo onde a democracia poderia se manifestar no esquema de “contrato social” em reação aos regimes absolutistas da Idade Medieval; com o advento da revolução industrial, que viria a revolucionar por completo todas as formas de utilização de recursos naturais e fontes inanimadas de energia elétrica, bem como, a relação do ser humano com os bens manufaturados, entre muitas outras novidades…
Aqui podemos recorrer aos comentários de Giddens acerca da evidente descontinuidade existente entre a “sociedade moderna” e as formas tradicionais de sociedade, visto que “tanto em sua extensionalidade, quanto em sua intensionalidade, as transformações envolvidas na modernidade são mais profundas que a maioria dos tipos de mudança característicos dos períodos precedentes” (Giddens, 1991). Segundo Giddens, esta descontinuidade encontra referência em pelo menos três aspectos: um primeiro marcado pelo “ritmo de mudança” nitidamente mais acelerado na modernidade do que em qualquer outro tempo, um segundo, diz respeito ao “escopo da mudança”, que passou a se potencializar no espaço através da interconexão de quase toda a superfície do planeta Terra, tornando as ondas de transformação social muito mais fluidas e amplas, e uma terceira, que diz respeito à natureza intrínseca das instituições modernas, que, conforme vimos, foram completamente alteradas em sua essência e forma.
A segunda fase da modernidade, que se estende até o início do século XX, é marcada pela tentativa de compreensão destes “descontinuísmos”, ou, deste novo ethos cultural que se instaurara desde então. Muitos pensadores tentaram explicar os fenômenos novos que surgiam, bem como, tantos outros já apontavam sinais de resistência e de crítica frente a toda esta nova ordem social. Entretanto, a impressão que se dá é que ainda nesta fase do modernismo, ressaltava-se o seu lado de “oportunidade”, de “segurança e progresso”. Giddens aponta que os três fundadores clássicos da sociologia, Marx, Durkhein e Max Weber, apesar de convergirem na idéia de que o trabalho industrial moderno tinha conseqüências degradantes para o trabalho e a criatividade humanas, traziam um certo sentido de esperança nas suas análises.
Segundo Giddens[2], “Marx via a luta de classes como fonte de dissidências fundamentais na ordem capitalista, mas vislumbrava ao mesmo tempo a emergência de um sistema social mais humano” pautado exatamente nesta percepção da crise. Durkhein, por sua vez, “acreditava que a expansão ulterior do industrialismo estabelecia uma vida social harmoniosa e gratificante, integrada através da combinação da divisão do trabalho e do individualismo moral”. Por fim, Weber, o mais pessimista dos três, “apontava o mundo moderno como um mudo paradoxal onde o progresso material era obtido às custas de uma expansão da burocracia que esmagava a criatividade e a autonomia individuais”.
Deve-se ressaltar, entretanto, que todos estes pensadores já enxergavam um certo “lado sombrio” da modernidade que viria a se manifestar apenas na sua terceira fase, iniciada no Século XX e postergada até os dias de hoje. Esta fase, é marcada por uma generalização do chamado “mal político”[3] presente nos regimes totalitários do início do século passado, pela crise ambiental que somente veio a tona a partir das décadas de 50 e 60, crise esta extremamente reforçada pelo advento da chama “sociedade de consumo” e sua característica pautada no ter em detrimento do ser, e, finalmente pela globalização injusta e desproporcional que vimos assistindo nos últimos tempos.
Assim, entra em cena a característica mais marcante da modernidade, ou seja, a sua natureza intrinsecamente contraditória e ambígua, onde “ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, auto-transformação e transformação das coisas em redor – mas ao mesmo tempo, ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos.” (Berman, 1986) (grifo nosso). Neste sentido, complementa Giddens, para o qual a “modernidade, como qualquer um que vive no final do Século XX pode ver, é um fenômeno de dois gumes. O desenvolvimento das instituições sociais modernas e sua difusão em escala mundial criaram oportunidades muito maiores para os seres humanos gozarem de uma existência segura e gratificante que qualquer tipo de sistema pré-moderno. Mas a modernidade tem também um lado sombrio, que se tornou muito aparente no século atual” (Giddens, 1991) (grifo nosso).
Se a modernidade, por um lado apresenta-se como o grande momento da humanidade com todas as possibilidades e promessas de desenvolvimento, progresso, e, portanto, melhora na qualidade de vida, por outro, ela traz consigo, toda uma sorte de perigos, riscos e inseguranças que carregam no seu bojo a própria questão da sobrevivência humana na Terra. Afora isto, o atual sistema econômico pautado no capitalismo mais do que selvagem, e, a política neoliberal, que afasta cada vez mais indivíduos e coletividades da possibilidade de participação na gestão política de seus “espaços”, torna evidente a permanência de uma cultura eivada de valores individualistas, mesquinhos, violentos, e, portanto, insustentáveis.
III. A crise do paradigma da modernidade.
Chegamos em um momento de assumir a crise do paradigma da modernidade. Boaventura de Souza Santos, em uma entrevista recente à revista Caros Amigos, coloca que se o que estamos vivendo não é uma crise, então não sabemos bem o que entendemos por crise. Ou seja, os dados e os fatos do mundo ao nosso redor comprovaram que a modernidade não teve condições de cumprir com as suas promessas iniciais de abundância, felicidade, paz e justiça social. Nunca tivemos tanto desenvolvimento científico e tecnológico, bem como, nunca tivemos a nosso dispor tantos produtos e bens de consumo como temos hoje, mas nada disso consegue assegurar a qualidade de vida desejada e presente nos sonhos e anseios de todos nós.
Pelo contrário. Os atuais dados relativos aos impactos do consumo insustentável servem para convencer qualquer um sobre o atual estágio de insustentabilidade ambiental. Há estudos (“Brower e Leon, 1999” – com base em relatórios do EPA, Agência de Proteção Ambiental norte-americana e o California Comparative Risk Project) que indicam ser o consumo insustentável um dos grandes responsáveis por quatro dos principais problemas ambientais enfrentados pela atualidade: 1. Poluição do Ar; 2. Aquecimento Global; 3. Poluição das Águas; e 4. Alteração de habitats. Podemos acrescentar ainda o atual contexto de super produção de resíduos sólidos, bem como, a iminente escassez de recursos naturais finitos não renováveis.
Por outro lado, há também fortes e irrefutáveis indicações de que o consumismo desenfreado e inconseqüente, ajuda a acentuar as desigualdades sociais. Se há exageros e irresponsabilidade no consumo de poucos, há carências básicas de muitos. Comprovadamente, 20% da população mais rica consome 86% dos produtos e serviços disponíveis, ao passo que os 20% mais pobres tem acesso a apenas 1,3% deste mesmo montante (Relatório da ONU – 1998). Esta desigualdade justifica a afirmação de que a sociedade de consumo existe para todos – desde que alguns poucos figurem como “consumidores” participantes e muitos outros como excluídos. Segundo o posicionamento crítico de Eduardo Galeano[4], “a sociedade de consumo é uma armadilha caça-bobos. A injustiça social não é um erro a ser corrigido, nem um defeito a superar: é uma necessidade essencial. Não há natureza capaz de alimentar um shopping center do tamanho do planeta.” (Galeano, 1998).
Todos estes dados, e tantos outros que poderíamos acrescentar a esta discussão, comprovam a atual insustentabilidade de nossos valores e condutas modernos. Resta-nos saber por quanto tempo ainda conseguiremos levar adiante esta situação de risco iminente, ou mais, se podemos, enquanto indivíduos, profissionais e cidadãos, alterar o rumo desta condição aparentemente inalterável.
IV. O carro de Jagrená e a possibilidade de escolha da humanidade…
Giddens traz uma imagem muito interessante do que é viver em uma sociedade moderna dentro do sentido de ambigüidade. Para ele, as três características das instituições modernas, a saber: a) separação entre tempo e espaço, b) desenvolvimento de mecanismos de desencaixe, e, c), a apropriação reflexiva do conhecimento – juntas, ajudam a explicar o significado de sua imagem de um carro de Jagrená, ou seja, “uma máquina em movimento de enorme potência que, coletivamente como seres humanos, podemos guiar até certo ponto, mas que também ameaça escapar de nosso controle e poderia se espatifar”. (Giddens, 1991).
Os últimos tempos e acontecimentos nos faz crer que, aparentemente, enquanto humanidade, estamos mais propensos a assumir que o Carro de Jagrená escapou de nosso controle e está caminhando para uma situação de risco iminente de se “espatifar”. Este fato se evidencia na afirmação de que, por mais que para alguns a condição de “sociedade de risco”[5] esteja clara, para tantos outros, esta mesma condição parece ainda muito fluida para justificar uma mudança de postura concreta e com potencial de materialização no tempo e no espaço.
Se por um lado, é quase impossível não se inquietar frente à obviedade da equação de insustentabilidade que nossos atuais padrões culturais nos colocam, por outro, a constante ratificação dos atuais padrões insustentáveis (tanto do ponto de vista social, quanto ambiental) evidenciada por um sem fim de dados e situações cotidianas – marcada pela percepção comum do poder de compra como padrão de felicidade, da comparação de nossa economia de mercado com valores como a liberdade e a democracia, da crença neste modelo de globalização tão evidentemente injusto e desproporcional, no apoio à violência da guerra e da manifestação de poder a qualquer custo – pela própria sociedade no seu dia a dia – e, principalmente, por aqueles que detém um poder de interferência social significativo, mostra-se senão como uma estupidez sem precedentes, uma ignorância muito profunda em relação à noção de causa e conseqüência aqui colocada.
Daí que, para que se possa continuar a acreditar na possibilidade de construção de uma sociedade pautada nos princípios da Ética, da Justiça Social e da Sustentabilidade ambiental, mister se faz a construção de uma percepção (e, quiçá uma consciência) coletiva acerca desta relação de causa e conseqüência de forma que a humanidade possa optar – com clareza e capacidade crítica – pela única alternativa plausível, ou seja, por segurar as “rédeas” do carro de Jagrená.
Giddens, apesar de afirmar que “até onde durarem as instituições da modernidade, nunca seremos capazes de controlar completamente nem o caminho, nem o ritmo da viagem, e nunca seremos capazes de nos sentirmos completamente seguros, porque o terreno por onde viajamos está repleto de riscos de alta conseqüência” (Giddens, 1991), abre uma perspectiva de esperança para a concretização da possibilidade de a humanidade direcionar o carro de Jagrená rumo a minimização dos riscos e a maximização das oportunidades oferecidas pela modernidade “entretanto, nada disso significa que devemos, ou que podemos desistir de nossas tentativas de governar o carro de Jagrená”.
Esta perspectiva, entretanto, sugere a criação de modelos de realismo utópicos, em uma proposta que pressupõe equilíbrio entre os ideais utópicos e o pensamento realista, considerando que as transformações sociais desejadas só terão efeito prático se vinculadas a uma possibilidade concreta de transformação institucional. A proposta de Giddens dentro deste sentido guarda referência no conceito de modernização reflexiva, bem como, na idéia de que alguns requisitos devem ser preenchidos párea que tal “transformação” aconteça, são eles: ser sensível sociologicamente; ser tática geopoliticamente; criar modelos de sociedade boa, e por fim, reconhecer que a política emancipatória tem que estar vinculada à política da vida.
No mesmo sentido, porém em um contexto mais otimista e totalizador da questão ambiental, encontramos a proposta de Enrique Leff para a concretização da possibilidade de condução pela humanidade do carro de Jagrená rumo a um futuro de sobrevivência, proposta esta cuja fundamentação para a transformação social encontra guarida na necessidade de se apreender a complexidade ambiental, em todas as suas esferas, de forma que se possa transcender para um futuro sustentável.
Para Enrique Leff, “la complejidad ambiental nos es solo la incorporación de la incertidumbre, el caos, e la posibilidad en el orden de la naturaleza. El saber ambiental rompe la dicotomía entre sujeto y objeto del conocimiento para reconocer las potencialidades y para incorporar valores y identidades en el saber. El saber ambiental internaliza las condiciones de la subjetividad y del ser, lo que tendrá una serie de efectos en una pedagogía de la complejidad ambiental” (Leff, 2000).
V. A transformação social a partir do eixo: Enxergar, Inquietar-se e Intervir.
Passaremos agora a abordar uma possível construção de um projeto pós-moderno de sustentabilidade a partir da proposta do eixo: Enxergar, Inquietar-se e Intervir. Esta proposta encontra muita identidade com a metodologia apresentada por Enrique Leff acerca da “Pedagogia de la complejidad ambiental”, podendo ser entendida como uma releitura desta a partir dos preceitos aqui colocados.
Inicialmente, mister se faz resgatar um dos pressupostos básicos de que a “…crise sócio-ambiental é uma crise ética e política da razão” (TASSARA, 1992), que enfoca os indivíduos e, por conseqüência, as coletividades, como pólos de irradiação de posturas positivas ou negativas frente a gestão de seus espaços, ou, melhor dizendo, de seu ambiente[6]. Daí que, uma vez que conscientizadas – da iminência dos riscos da sociedade contemporânea, das relações de causa e conseqüência entre estes riscos e os valores da modernidade, e da possibilidade concreta de cada um contribuir para a mudança destes valores – a humanidade pode, e deve, tomar para si esta proposta.
Para tanto, precisamos apenas considerar a importância de respeitarmos o eixo de construção de uma consciência política emancipada e comprometida com a vida: enxergar, inquietar-se e intervir, como caminho a ser percorrido por indivíduos e coletividades dentro deste processo. Afinal, para que se possa intervir – entendido este como agir de forma planejada – tanto indivíduos quanto coletividades, precisam estar suficientemente conscientizados acerca de toda a complexidade ambiental, e mais, acerca de sua identidade com esta mesma complexidade, como ser pertencente da possibilidade de construção de um futuro de problemas ou de soluções.
Assim, como etapa inicial, é preciso:
Enxergar a realidade complexa na qual estamos inseridos – suas raízes históricas, e seus valores culturais como a competição, a descartabilidade, a superficialidade, a ganância, o individualismo, a alienação política…
Enxergar o quanto estamos limitados em nossa capacidade de escolha crítica e consciente em função da intencional parcialidade da mídia evidenciada nos diversos veículos de comunicação e da existência de um sistema autoritário e ditatorial – escamoteado na atmosfera falaciosa do discurso das grandes marcas e corporações em suas estratégias de marketing – de regras de conduta e desejos sociais de pertencimento. Afinal, quem está falando por cada um de nós? A quem estamos servindo?…
Enxergar-se a si próprio dentro deste processo, como potencial ator de ratificação de um sistema fadado ao insucesso ou, em contrapartida, um agente de transformação deste mesmo sistema rumo à construção de uma sociedade coerente com os princípios de sustentabilidade…
A idéia contida no Enxergar pressupõe uma primeira etapa de percepção e sensibilização, que, uma vez que refletida, pode transcender para um estágio superior de consciência, consciência esta que se manifesta na possibilidade de:
Inquietar-se frente à obviedade da equação de insustentabilidade que nossos atuais padrões culturais nos colocam, seja do ponto de vista ambiental: super produção de lixo e escassez de recursos naturais como resultado óbvio do atual sistema de produção e consumo linear – seja do ponto de vista social: exclusão e miséria cada vez mais acentuadas pelas desigualdades sociais resultantes da acumulação de capital perfeitamente previsível dentro do contexto da economia tradicional…
Inquietar-se frente à percepção de que somos co-autores na construção do nosso mundo, e, portanto, co-responsáveis frente a possibilidade concreta de transformação social…
Aqui neste momento, abre-se então uma perspectiva de mudança de postura e hábitos que podem ser entendidos como pequenas ações no dia a dia, cujo poder e eficácia, quando somadas, podem garantir a Intervenção maior, que é a assunção – pelo indivíduo e pelas coletividades – da gestão de suas vidas, bem como, da vida comum, em um amplo projeto de construção de um futuro onde a humanidade possa ter garantida a sua própria condição de sobrevivência.
Por certo que esta proposta não pode e nem deve caminhar sozinha dentro de um contexto de transformação social rumo a construção de um novo paradigma, que, conforme Boaventura de Souza Santos, deve ser “prudente para uma vida decente”[7]. Concordamos com Giddens sobre a importância de se considerar todas as instituições sociais da modernidade como ponto de partida e de mudança dentro deste conceito. Mas, certamente, a mudança de postura frente a vida e a possibilidade de manutenção desta, não podem ser substituídas por nenhuma outra mudança institucional.
Esta é a esperança que nos resta. Roger Garaudy, em sua autobiografia “Minha jornada solitária pelo século”[8] nos lembra sobre o movimento deflagrado na França no final dos anos 70, a partir do seu livro “Apelo aos Vivos”, criando “redes de esperança”, que funcionam como “resistência, não violenta, para lutar contra a esmagadora ocupação das instituições e dos espíritos pela ideologia do ‘crescimento’ e pela anestesia das almas. Redes de resistência ao absurdo (…) revelam-nos os tesouros de imaginação enterrados nas profundezas do nosso povo”. São esses tesouros que devemos procurar em cada um, em cada grupo.
Um profundo apelo ao que ainda resta de vivo em cada pessoa, para que sacudam a inércia e a angústia que nos imobilizam diante das telas de televisão e das obviedades de um cotidiano simplificado e pasteurizado pelos poderes econômicos, políticos, científicos e religiosos.
Sintonizando o nosso próprio foco, podemos elaborar perguntas e respostas sobre o que buscamos na vida, as quais podem se constituir em metas flexíveis e provisórias, mas podem e devem se alimentar numa convicção profunda de sentido para a vida. Devem se alimentar também da práxis cotidiana. Do fazer, ensinar e aprender. Não basta fazer. Não basta pensar. O verbo precisa fazer-se carne!
VI – Bibliografia
– Berman, Marshall. (1986). Tudo que é sólido desmancha no ar – A aventura da modernidade. Companhia das Letras, São Paulo.
– Garaudy, R. (1996). Minha jornada solitária pelo século. Nova Fronteira, Rio de Janeiro.
– Galeano, E. (1998). Lecciones de la Sociedad de Consumo Patas Arriba. La escuela del mondo al revés. Siglo XXI, Madrid.
– Giddens, A. (1991). As consequências da Modernidade. UNESP, São Paulo.
– Herculano, S. et. alli. (2000). Qualidade de vida e riscos ambientais. EdUFF, Niterói.
– Leff. E. (coord.) (2000). La complejidade ambiental. Siglo XXI, México.
– Sorrentino, M. (coord.) et alii. Ambientalismo e Participação na Contemporaneidade. São Paulo/SP: EDUC/FAPESP, 2001.
[1] Esta proposta de transformação social, referenciada na teologia da libertação da década de 70, será melhor abordada ao final deste artigo no momento de apresentação de uma possível interação entre a proposta do artigo e a abordagem da educação ambiental segundo concepção da autora.
[2] Todas as frases entre aspas deste parágrafo foram retiradas do livro “As conseqüências da modernidade” de Anthony Giddens, 1991.
[3] Este conceito se firmou com Paul Ricouer em sua obra “Leituras I”.
[4] trecho traduzido do livro “Lecciones de la Sociedad de Consumo Patas Arriba”. La escuela del mondo al revés. Ed. Siglo XXI, Madrid 1998.
[5] O conceito de sociedade de risco, proposto por Ulrich Beck em seu livro “Teoria de la sociedad de riesgo” (1996) parte do entendimento de que a modernização é percebida como tendo levado a um conjunto de riscos e azares que não apenas ameaçam as atuais gerações, mas também podem prejudicar a qualidade de vida e possivelmente a própria sobrevivência das gerações futuras. Estes riscos se compõem de riscos ambientais, ecológicos, pessoais e etc… Caberiam muitas outras considerações acerca deste tema, mas não no contexto deste trabalho.
[6] Utilizamos o termo “ambiente” segundo a concepção de Milton Santos, qual seja, “meio ambiente é a organização humana no espaço total” (M. Santos, apud, Tassara. 2003).
[7] Esta frase é uma adaptação do título do último livro de Boaventura de Souza Santos, editado no Brasil pela Editora Cortez, 2003.
[8] Todas as citações entre aspas, nos parágrafos seguintes, foram retiradas das páginas 170 a 179 desse livro editado pela Nova Fronteira (Rio de Janeiro) em 1996.